A Quaresma é um período específico do Ano Litúrgico da Igreja, e parte integrante do Ciclo Pascal. Ela foi introduzida no princípio do século IV para o Oriente e no final do século IV para o Ocidente, como vivência preparatória para a festa anual da Páscoa da Ressurreição. Historicamente, teve um caminho progressivo, variando de alguns dias de preparação para a Páscoa até fixar-se em quarenta dias de preparação.
Celebrar o tempo da Quaresma é intensificar o caminho à fonte, à origem e à essência da fé cristã, pela via do batismo: o Mistério Pascal de Cristo. Tempo de os batizados viverem a sua renovação de vida, como também tempo de os catecúmenos (os que se preparam para o batismo) vivenciarem os seus últimos estágios e ritos para a celebração do batismo na noite da Vigília Pascal.
A jornada dos quarenta dias quaresmais foi estabelecida em analogia com passagens bíblicas: quarenta dias do dilúvio (Gn 6-8); quarenta dias de Moisés no Monte Sinai (Ex 24,18); quarenta dias do profeta Elias caminhando rumo ao Monte Horeb (1Rs 19,8); os quarenta dias antecedentes da possível destruição de Nínive, conforme o oráculo de Jonas (Jn 3,4); quarenta anos de peregrinação do povo eleito pelo deserto (cf. Nm 14,33; Dt 8,2); quarenta dias das tentações de Jesus no deserto (cf. Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13). O número quatro (4) e seus múltiplos têm um teor metafórico para expressar a totalidade da vida humana. Os quarenta dias quaresmais representam a totalidade de uma vida em seu processo de conversão.
A espiritualidade da quaresma apresenta, em unidade, três aspectos: cristocêntrico, pascal e batismal. Este tempo litúrgico é um brado de conversão como redescoberta, ressignificação e aprofundamento do sentido da vida cristã para os discípulos e discípulas do Senhor. A liturgia da Palavra, particularmente com os seus ciclos dominicais (A, B e C), são legítimos roteiros de vida e progressão para todos os fiéis e os catecúmenos.
Historicamente, sabe-se que a compreensão e a vivência quaresmais também sofreram descaracterização, quando muitos enfatizaram a punição de Deus para com o pecador muito mais do que o seu amor misericordioso pelas criaturas, e interpretando a Paixão de Cristo como forma de aplacar a ira divina. Além disso, a Quaresma sobressaiu em relação à culminância da festa pascal, que é a festa por excelência do amor de Deus às criaturas na pessoa do seu Filho crucificado e ressuscitado. As celebrações da Semana Santa foram revestidas de um tom de dramatização e teatralização, focando o sofrimento de Cristo, muito mais do que a valorização das próprias ações litúrgicas. O Concílio Vaticano II, com a reforma litúrgica, recuperou o sentido quaresmal e sua relação com a Páscoa, renovando as ações litúrgicas.
As compreensões e práticas desfocadas da Quaresma, anteriores ao Concílio Vaticano II, ainda têm reflexos na atualidade, a ponto de muitos viverem uma quaresma desvinculada do seu sentido pascal, ao reduzirem a vivência quaresmal às práticas devocionais pessoais, hipervalorizando esse Tempo litúrgico, sem associá-lo ao Tempo Pascal. A
Constituição Sacrosanctum Concilium (SC), do Vaticano II, é referencial para a recuperação do autêntico sentido e práticas quaresmais, na consideração do ano litúrgico e sua unidade (cf. SC 102-110).
Os exercícios quaresmais – o jejum, a esmola e a oração (cf. Mt 6,1-6.16-18) – mais as celebrações penitenciais e o sacramento da reconciliação, são elementos significativos que devem ajudar a focar e valorizar a vivência essencial das liturgias da Palavra e eucarística. Viver a Quaresma é retornar à fonte original da vida, na experiência do amor incondicional e infinito de Deus para com a humanidade e toda a obra criada, sob a luz do Mistério Pascal.
A Igreja no Brasil – há exatos 60 anos neste 2024! – difunde e exorta como uma das práticas penitenciais e de conversão para os fiéis católicos a Campanha da Fraternidade. O tema deste ano é “Fraternidade e amizade social”, com o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (cf. Mt 23,8). A tônica do amor universal, segundo o testemunho de Cristo, é a atitude que ultrapassa todas as barreiras relacionais e espaciais para o cultivo da vida solidária, da comunhão e da unidade: eis a razão e a referência para a vida de fraternidade e amizade social, segundo a exortação da Campanha. A Campanha da Fraternidade sempre nos recorda que a vida espiritual e mística não está dissociada do plano das relações humanas e da organização pela vida de todos, na dignidade, no amor, na justiça e na plenitude.
O texto-base da Campanha da Fraternidade, publicado pela CNBB, apresenta a dinâmica do VER (com referência em Gn 4,9 – “Onde está o teu irmão?”): da consciência da fraternidade à percepção das realidades de divisões e inimizades aos sinais que suscitam e sustentam a amizade social; do ILUMINAR (com referência a Mt 23,8 – “Vós sois todos irmãos e irmãs”): o reconhecimento de Jesus como único Mestre, Deus único Pai e o Espírito, que gera diversidade de carismas e ministérios, o único Guia; do AGIR (com referência em Is 52,4 – “Alarga o espaço da tua tenda”): a vida cristã na Igreja como espaço de acolhida, diálogo, integração, ou seja, uma morada aberta, no fomento da comunhão com o Pai, por meio do Evangelho de Cristo.
Que a vivência quaresmal encontre sua realização e exultação no triunfo da vida de todos, que tem como princípio a vida do Cristo Ressuscitado, o qual se faz continuamente presente e inspirador para a vida do mundo!
Frei José Moacyr Cadenassi, OFMCap.
Membro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, na Província dos Capuchinhos de São Paulo e Chile.