Dezenas de multinacionais têm abandonado as suas operações na Argentina ou diminuído a sua estrutura a um mínimo operacional. O fenômeno não se limita às grandes companhias de capitais estrangeiros. Centenas de pequenas e médias empresas estudam a possibilidade de fazerem do Brasil e do Uruguai a sua base de produção.
Por trás do movimento, os analistas identificam medidas arbitrárias e intervencionistas do governo argentino que elevam o risco para as empresas, afetam o clima de negócios e afugentam o investimento.
A lista de multinacionais regionais e globais que decidem deixar a Argentina ou diminuir a sua exposição aumenta a cada dia. São companhias aéreas, grandes lojas de varejo, supermercados, empresas de autopeças, laboratórios e grandes marcas conhecidas.
Os casos mais emblemáticos são o da companhia aérea chileno-brasileira Latam e o da rede de lojas de departamento chilena Falabella, mas a lista inclui as companhias áereas Norwegian, Qatar, Emirates e Air New Zeland.
Também bateram asas empresas francesas, como o laboratório Pierre Fabre, e a de autopeças Saint-Gobain Sekurit. A alemã Basf levou para o Brasil a sua linha de pinturas para automóveis e a farmacêutica também alemã Gerresheime decidiu sair do país. Há também marcas emblemáticas de têxteis como Nike, Wrangler e Lee. A autopeças norte-americana Axalta e as energérticas Raizen Gás e GE Energy desistiram do mercado argentino.
Segundo um estudo da consultora First Capital, a lista abrange 28 multinacionais nos últimos seis meses. Desde que o atual governo argentino ganhou as eleições há um ano, 50 empresas foram pelo mesmo caminho. Outras 20 companhias avaliam se ficam à venda.
Pequenas e médias argentinas rumam ao Brasil e ao Uruguai
Embora não tenham a visibilidade das multinacionais, o fenômeno de fuga abrange também as empresas argentinas, sobretudo as pequenas e médias.
“Desde que o governo anunciou o endurecimento do controle de câmbio há dez dias, as consultas de pequenas e médias empresas aumentaram exponencialmente. Muitas vezes são empresas familiares, mas há algumas grandes também”, revela à RFI o consultor argentino Gustavo Segré, sócio da consultora CenterGroup, há 30 anos no Brasil.
“Antes, recebíamos uma consulta por dia de argentinos interessados em ter a residência brasileira e três consultas por semana de interessados em abrir empresas no Brasil. Agora, as consultas diárias para residência multiplicaram-se por dez e as consultas para empresa multiplicaram-se por cinco. Não estamos dando vazão”, ilustra Segré.
O consultor argentino explica que são pessoas que querem abrir uma porta no Brasil para o caso de a situação econômica na Argentina se complicar ainda mais.
“O plano B dos interessados é o Brasil para o caso de terem de deixar o país para que a empresa sobreviva. A Argentina não lhes dá segurança em meio a tantas medidas arbitrárias, intervencionistas e antimercado”, aponta.
Segré vê dois tipos de situação: grandes empresas que já estão nos dois países e que priorizam o lado brasileiro, diminuindo a parte argentina ao mínimo necessário. A outra situação é a de empresas argentinas que querem abrir um canal comercial próprio no Brasil de onde possam operar sem restrições nem controles como ocorre na Argentina.
“Continuam a fabricar na Argentina, mas querem colocar um pé no Brasil para eventualmente abrirem uma indústria no futuro”, indica.
Já o consultor Marcelo Elizondo tem assessorado empresas argentinas interessadas em ir para o Uruguai.
“Tenho clientes que avaliam diversificar a sede do negócio. Não querem sair da Argentina, mas começar a desenvolver novos projetos fora, especialmente no Uruguai”, descreve Elizondo à RFI.
Diante da avalanche de empresas argentinas interessadas em cruzar o Rio da Prata ao Uruguai, ele foi procurado por quatro consultoras uruguaias para fechar uma aliança.
“Fechei uma parceria com uma consultora que tem recebido entre 80 e 100 consultas por dia por parte de empresas argentinas e até de profissionais que querem se instalar no Uruguai”, conta Elizondo.
“Ninguém sabe se virá um terremoto econômico na Argentina, mas as probabilidades vêm crescendo. As condições são a cada dia mais vulneráveis”, afirma.
Segundo os especialistas, as empresas argentinas procuram um horizonte para o investimento, para o crescimento e para a rentabilidade. Querem liberdade econômica em oposição às restrições de capital e aos controles cambiais que asfixiam os negócios. Buscam previsibilidade diante da constante desvalorização do peso argentino e da alta inflação que corroem o lucro. E procuram segurança jurídica: regras claras e estáveis.
“Na Argentina prevalece o poder político sobre o direito e a política sobre as instituições”, lamenta Elizondo.
Medidas que afugentam os investimentos
As empresas têm sofrido cada vez mais restrições cambiais. O governo tem tomado medidas intervencionistas como congelamento de preços e de tarifas mesmo quando a inflação está acima de 40% ao ano.
Desde 20 de março, a Argentina vive o mais prolongado lockdown do mundo, sem horizonte para terminar. Neste período, as empresas estão proibidas de demitir sem justa causa e, se demitirem, devem pagar indenização em dobro. O resultado é que muitas preferem fechar as portas.
Já faliram mais de 30 mil lojas e empresas, segundo a Câmara de Comércio da Argentina. Mesmo quando as empresas estão asfixiadas, o governo analisa aumentar os impostos.
Há dez dias, o Banco Central anunciou que as empresas endividadas no exterior em mais de um US$ 1 milhão terão de reestruturar 60% das suas dívidas com os seus credores. Só poderão ter acesso aos dólares do Banco Central para pagar os 40% restantes.
A agência classificadora de risco Moody’s acaba de alertar para o risco de calote das empresas argentinas.
Restrições e controles
O dólar, reserva de valor e termômetro com o qual os argentinos avaliam a saúde da economia, está escasso no país. As reservas do Banco Central argentino somam US$ 42 bilhões, mas, desse montante, irrisórios US$ 2,5 bilhões estão disponíveis ao mercado.
Argentina teve a pior queda da economia da sua história no segundo trimestre. O Produto Interno Bruto encolheu 19,1%. A queda argentina é ainda mais profunda porque acontece sobre uma base recessiva. O país alterna recessão e estagnação há nove anos.
A previsão para o ano é de um piso de queda de 12,5% do PIB. A economia per capita será equivalente, no final do ano, à de 1973, fazendo o país recuar ao nível de 47 anos atrás.
Como o país não tem acesso ao crédito, o déficit fiscal, em torno de 10%, tem sido financiado por emissão monetária sem respaldo. Uma perigosa aceleração da inflação está no horizonte. Alguns analistas até advertem para o risco de hiperinflação.
“O medo é de uma ‘venezuelização’ da economia argentina. Há uma elevada possibilidade de disparada da inflação e até de hiperinflação. Não há dólares e não sabem de onde sairá dinheiro para cobrir o gasto público que não parece diminuir”, alerta o consultor e analista internacional Gustavo Segré.
O orçamento 2021, no qual poucos acreditam, prevê um déficit fiscal de 4,5% do PIB, financiado em 60% pela emissão monetária.
“A emissão monetária representa 65% dos impostos que o Estado arrecada. O governo não pensa em diminuir o déficit fiscal fenomenal. E financiam o déficit com emissão. Vão, de cabeça, ao encontro de um problema hiperinflacionário”, adverte o economista Roberto Cachanosky.
Fonte: RFI