O Juiz da 4ª Vara Federal em Foz do Iguaçu e especialista em Fronteiras pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteira (IDESF) , Matheus Gaspar, publicou no jornal Gazeta do Povo um artigo questionando o “tráfego circular” na Ponte Internacional da Amizade, que é realizado principalmente por veículos paraguaios.
No artigo, o juiz aponta que o tráfego entre as aduanas do Brasil e do Paraguai, na Ponte da Amizade, têm um grande volume de táxis, mototáxis e vans paraguaias. Segundo ele, há um desequilíbrio em comparação com os prestadores de serviços de transportes de origem brasileira.
Uma das causas do desequilíbrio seria decorrente do fato de que a maior parte da frota de vans e táxis paraguaios é composta por veículos usados importados de outros países, o que dificulta a concorrência dos prestadores de serviços de transporte brasileiros em razão dos altos custos de venda de veículos no Brasil.
Ele destaca que grande parte do tráfego de veículos e pessoas entre as duas aduanas é “circular”, lembrando um carrossel, esteiras de bagagens de aeroportos ou sistemas industriais de movimentação de produção. A diferença é que, neste caso, a movimentação é feita por motos, carros e vans, que logo após desembarcarem pessoas e mercadorias, retornam ao “tráfego circular”.
Esse tráfego circular, de acordo com o artigo, além de esgotar a capacidade da ponte, também consome os recursos de fiscalização aduaneira, migratória e policial, criando uma espécie de “cortina de fumaça” que dissimula a introdução de pessoas e ilícitos. Nesta perspectiva, o “tráfego circular” assume a função de “roleta da sorte” onde “passeiros”, “cotistas” e criminosos buscam aumentar as chances de sucesso, escolhendo o melhor momento para fazer a travessia entre as aduanas.
O juiz ressalta que, caso o mesmo modelo de tráfego seja repetido na segunda ponte que está em construção em Foz do Iguaçu e o Paraguai, seguramente a capacidade será rapidamente esgotada, já que o uso destes recursos pode estar a serviço de interesses menos republicanos que os interesses da sociedade em geral.
Confira o artigo completo:
A tragédia dos comuns e a Ponte da Amizade
Em 1833, o matemático e economista William Forster Lloyd criou a teoria conhecida como “A tragédia dos comuns”. Basicamente, a teoria diz que um recurso público disponibilizado de forma gratuita ou sem controle será super explorado até seu esgotamento.
O exemplo original da teoria é relacionado com pastagens. Pastores de um determinado local ampliaram seus rebanhos através do uso de pastagens públicas. O problema é que exatamente por serem pastagens comuns, não foi realizado o manejo e nem os investimentos que normalmente eram empregados nas pastagens particulares.
O resultado é que o ganho inicial obtido com o aumento dos rebanhos, com o passar do tempo, deixou de existir em razão do esgotamento do solo das pastagens públicas.
A explicação para isso é que num ambiente de escassez, os indivíduos ajustam suas estratégias visando maximizar seus interesses, mesmo que isso eventualmente possa prejudicar a coletividade. Um exemplo é o rateio comum de contas de água de prédios ou condomínios. Normalmente, os usuários tendem a usar mais água do que fariam, se a conta fosse individualizada.
De certa forma, a ideia de William Foster se opõe ao pensamento de Adam Smith de que a soma dos interesses individuais cria uma espécie de “mão invisível” que favorece o crescimento coletivo.
Existem inúmeras hipóteses relacionadas com a “Tragédia dos comuns”, por exemplo: o esgotamento de recursos pesqueiros de lagos, rios e oceanos, o abuso na utilização de saúde pública gratuita, o acesso indiscriminado ao judiciário, o desmatamento de florestas públicas, a poluição em geral, etc.
É exatamente nesta questão do interesse individual versus interesse coletivo é que a “Tragédia dos comuns” guarda relação com a Ponte da Amizade.
Essa importante ligação entre o Brasil e o Paraguai também pode ser considerada um recurso público e finito, já que o fluxo de veículos e pessoas através da ponte é limitado. A questão é saber se a utilização deste recurso está atendendo interesses individuais específicos ou a coletividade em geral.
O esgotamento da capacidade da Ponte da Amizade é evidente. A rotina diária de filas de veículos e pessoas é inquestionável. Tanto que já está em andamento a construção de uma segunda ponte e uma terceira já está sendo planejada.
“Caso o modelo atual seja mantido, a capacidade da segunda
ponte também será esgotada rapidamente.
Ocorre que, aparentemente, o uso dos recursos
da Ponte da Amizade atende mais aos interesses
individuais do que aos interesses coletivos.”
Sem dúvida a ampliação da ligação entre o Brasil e o Paraguai é algo importante. Mas será que só o aumento do número de pontes resolverá o problema do esgotamento da capacidade de tráfego de pessoas e veículos?
Provavelmente não. Caso o modelo atual seja mantido, a capacidade da segunda ponte também será esgotada rapidamente. Ocorre que, aparentemente, o uso dos recursos da Ponte da Amizade atende mais aos interesses individuais do que aos interesses coletivos, menosprezando a importância da ligação entre os dois países.
Qualquer um que venha a fazer o percurso em questão pode observar facilmente que o tráfego entre as aduanas têm um grande volume de táxis, mototáxis e vans paraguaias. Notoriamente, há um desequilíbrio em comparação com os prestadores de serviços de transportes de origem brasileira.
Provavelmente este desequilíbrio decorre do fato de que a maior parte da frota de vans e táxis paraguaios é composta por veículos usados importados de outros países, o que dificulta a concorrência dos prestadores de serviços de transporte brasileiros em razão dos altos custo de venda de veículos no Brasil.
O emprego de veículos desta natureza pelo Paraguai também favorece práticas ilegais, reduzindo as perdas (tradeoffs) com a apreensão de carros ou vans de baixo valor, que são usados para o transporte de ilícitos.
Mais grave do que isto talvez seja o fato de que grande parte do tráfego de veículos e pessoas entre as duas aduanas é “circular”, lembrando um carrossel, esteiras de bagagens de aeroportos ou sistemas industriais de movimentação de produção. A diferença é que, neste caso, a movimentação é feita por motos, carros e vans, que logo após desembarcarem pessoas e mercadorias, retornam ao “tráfego circular”.
Motos, vans e táxis que acabaram de chegar ao Paraguai, novamente assumem posições privilegiadas na fila, próxima à aduana, retornando novamente para o Brasil, levando pessoas e mercadorias. Enquanto isso, o restante dos usuários da ponte aguarda, às vezes por horas, uma vaga no “tráfego circular”.
Do lado brasileiro, praticamente a mesma coisa acontece. As motos acessam um desvio, imediatamente depois da aduana brasileira, e retornam para o Paraguai. Vans e táxis têm que percorrer uma pequena distância dentro do território brasileiro até acessar um retorno exclusivo, que dá acesso à rodovia principal no sentido Ponte da Amizade.
Nesse acesso, vans e táxis concorrem com os veículos particulares que rumam para a ponte. Como é um cruzamento, vale a lei do mais forte. No caso, levam vantagem os veículos maiores, como caminhões e ônibus, ou os veículos em piores condições. Novamente, vans e táxis paraguaios, pela sua origem (veículos usados importados) e condições ruins, levam vantagem na disputa com veículos particulares, pois têm menos a perder no caso de alguma colisão (tradeoff).
O “tráfego circular”, além de esgotar a capacidade da ponte, também consome os recursos de fiscalização aduaneira, migratória e policial, criando uma espécie de “cortina de fumaça” que dissimula a introdução de pessoas e ilícitos. Nesta perspectiva, o “tráfego circular” assume a função de “roleta da sorte” onde “passeiros”, “cotistas” e criminosos buscam aumentar as chances de sucesso, escolhendo o melhor momento para fazer a travessia entre as aduanas.
Caso este modelo permaneça e seja replicado, seguramente a capacidade da segunda ponte será rapidamente esgotada, já que o uso destes recursos pode estar a serviço de interesses menos republicanos que os interesses da sociedade em geral.
Não podemos esquecer que não estão em jogo apenas os custos com a construção de novas pontes. As novas ligações entre os países também demandam custos com aduanas, fiscalização, contratação de servidores públicos, etc.
A Receita Federal, juntamente com uma faculdade privada de Foz do Iguaçu, tem realizado anualmente estudos sobre o fluxo na Ponte da Amizade. Porém, aparentemente as pesquisas não abordam as questões aqui levantadas. Inclusive, existe um percentual altíssimos de pessoas que optam por não responder questões formuladas durante a pesquisa de campo, sugerindo que realmente existem interesses obscuros por trás do fluxo da Ponte da Amizade.
O esgotamento da capacidade de tráfego da Ponte da Amizade também prejudica o comércio em geral entre os dois países, o fluxo de turistas, de estudantes e de trabalhadores que vão até o Paraguai. Os próprios caminhões que fazem o escoamento da safra ou que abastecem o Paraguai com bens de toda natureza, também são reféns do “tráfego circular”.
Possivelmente, a solução para o problema está relacionada com alguma forma de regulamentação, que seguramente deve ser diferente da atual que, por exemplo, obriga vans, táxis e mototáxis a voltarem sem passageiros, depois de fazerem a travessia entre os países. Esta regra é irracional do ponto de vista da escassez de vagas no tráfego, bem como sob a ótica ambiental, já que aumenta a queima de combustíveis fósseis, a poluição sonora, etc.
Por outro lado, certamente devem existir outros meios de transporte público mais eficientes e sustentáveis, como o transporte coletivo, as ciclovias e o uso de veículos compartilhados ou movidos à eletricidade. O que também estaria em harmonia com outro cartão postal da tríplice fronteira, a Usina de Itaipu, que também é compartilhada entre Brasil e Paraguai e é a maior produtora de energia renovável do mundo.
Cabe às autoridades de ambos os países investigar à serviço de quem está a Ponte da Amizade e à comunidade da tríplice fronteira buscar alternativas mais eficientes de mobilidade na travessia, sem perder de vista questões migratórias, aduaneiras e relacionadas com combate à ilícitos.
*Matheus Gaspar – Juiz da 4ª Vara Federal em Foz do Iguaçu e especialista em Fronteiras pelo IDESF
** Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo em 14.10.19
Foto: Luciano Barros